sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Preceito e Amor.

O drama religioso de nosso tempo consistindo essencialmente numa infiltração vinda das correntes de anarquismo revolucionário, apresenta diversos aspectos de desordem entre os quais destacaria dois de incalculáveis conseqüências: 1°) negação do princípio de autoridade por aqueles que deveriam exercê-la para a proteção dos fiéis e salvação das almas: essa negação é feita em nome de uma falsa bondade como se viu no caso da Espanha, e em tantos outros; 2°) negação de obediência à santa doutrina e à tradição: essa recusa é praticada em nome de uma evolução e de reformas que pretendem transformar a Igreja Católica em “outra”. Nesta atmosfera poluída de erros, as mais extravagantes idéias surgem ou ressurgem nas mais variadas circunstâncias. Assim é que a contestação do preceito é feita em torno da missa dominical por um bispo, ou é retomada como “contrária” ao “puro amor de Deus” ou em nome da dignidade do homem.
Digo retomada, porque constitui a mais grave e cruel heresia da Idade Média que reaparece sob as mais surpreendentes formas e chega a cativar as pessoas que julgávamos mais preparadas para repelir tão funesto erro. O velho mestre que há quase trinta anos ensina que a perfeição cristã consiste no preceito e não no conselho, e que esse preceito é a mais verdadeira e pura forma de amor, tentará nestas páginas retomar textos antigos e esquecidos que merecem recordação atenta. Num primeiro contexto, o do verdadeiro progresso sobrenatural, apresentamos páginas escritas no volume “Progresso e Progressismo”, AGIR, que escrevi ao lado de Chesterton, Christopher Dawson, Marcel de Corte, Jacques Maritain e Alfredo Lage. Ei-las:


“O PRECEITO DA PERFEIÇÃO”

Não há idéia mais cristã do que a de progresso, nem há menos cristã do que a de fixismo e estagnação. A vida cristã, efetivamente consiste na obediência do preceito máximo que nos deixou o Senhor: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o coração, de toda a alma, de todo o entendimento, e ao próximo como a ti mesmo”. E, com a mesma inspiração, diz assim o Apóstolo: “Como escolhidos de Deus, santos e bem amados, revesti-vos de entranhas de misericórdia, de bondade, de humildade, de doçura, de paciência... Mas acima de tudo revesti-vos de caridade, que é o vínculo da perfeição”. (Col. III, 14). Esta proposição: “A caridade é o vínculo da perfeição” nos indica o que, por muitas outras vias, a palavra de Deus nos confirma a saber: o preceito da caridade não tem limite, e a vida da caridade é essencialmente dinâmica em busca sempre da caridade maior. Todo o amor tem esse dinamismo que o leva sempre a querer mais amor. Na vida sobrenatural da caridade divina o impulso do amor está expresso em outro preceito de Deus que nos parece excessivo e hiperbólico: “Sede perfeito como vosso Pai celestial é perfeito” (Mt. V, 48). Que quererá dizer este mandamento? A primeira idéia que se depreende é a de conexão entre noções que não pareciam vinculadas: a de amor, a de perfeição e a de obediência ao preceito. A vida de caridade só responde bem ao mandamento de Deus se é desejo de perfeição, e se é progressivo, isto é, desejo cada vez maior. Nos caminhos de Deus quem não progride, regride, disseram todos os Santos Padres, e repetiram todos os doutores e santos. Pode-se até dizer que toda a vida mística, que não é privilégio de alguns nem consiste no cumprimento mais rigoroso dos conselhos evangélicos, e sim na apaixonada observância do preceito, poderia condensar-se nesta fórmula que pôs em marcha todas as almas sequiosas de vida eterna: quem não progride, regride.

Como se explica a universalidade do preceito da perfeição, e como se conciliar tão formidável enunciado com as nossas fraquezas e com a misericórdia de Deus? O impossível Deus não exigirá de nós e para o difícil ele tomou a iniciativa primeira de montar, no Monte Calvário, uma usina de energias espirituais que nos capacitam para a vida de caridade, começo de vida eterna. Ouçamos o que nos diz Santo Tomás a este respeito.

Santo Tomás — “Pode alguém ser perfeito nesta vida? A perfeição da vida cristã consiste, com efeito, na caridade, e implica uma certa universalidade ou totalidade, já que perfeito se diz daquilo a que nada falta. Deste ponto de vista pode-se considerar uma tripla perfeição: a perfeição absoluta consiste em amar a Deus tanto quanto ele é digno de ser amado; essa perfeição não é possível à criatura, pois só Deus pode se amar assim, isto é, infinitamente. A segunda perfeição é a que consiste em amar a Deus de todo o nosso poder, de tal modo que nosso amor tenda sempre atualmente para ele. Esta perfeição só é possível no céu”.

Há enfim uma terceira perfeição que consiste em amar a Deus, não de modo infinito e tanto quanto ele merece, nem também sempre tendendo para ele atualmente, mas em excluir tudo o que se opõe ao amor de Deus. “O veneno que mata a caridade, diz Santo Agostinho, é a cupidez; quando ela é destruída tem-se a perfeição”. Na terra esta perfeição pode existir, e de duas maneiras:

“Ou exclui o homem de seus afetos tudo o que é contrário à caridade e a destruiria, como o pecado mortal, e isto é necessário para a salvação;

“Ou então exclui de seus afetos, não somente o que é contrário à caridade, mas tudo o que impede o seu amor de se dirigir totalmente para Deus. Sem esta perfeição, a caridade pode entretanto existir nos principiantes e nos que começam a progredir” (S. T. IIa, IIae, qu. 184, a. 2).

Todos os cristãos, diz Garrigou-Lagrange, cada um segundo sua condição, devem tender à perfeição da caridade. Deus não preceitua um atingimento, mas uma tendência, um esforço de busca, um desejo de perfeição, ou ao menos, como dizia São Francisco de Sales, um desejo de um desejo de perfeição. Sem esse fundamental dinamismo não há vida cristã.

Em outra obra, “Dois amores e duas cidades” (pág. 101 — Vol. II) encontramos considerações que julgamos merecer atenção:


“NO PROGRESSO DA VIDA RELIGIOSA”

No progresso da vida religiosa é mais nítida e mais exaltada a idéia de docilidade crescente. Enquanto o homem natural cresce fazendo progresso de autonomia, o homem sobrenatural cresce no sentido de maior heteronomia. A pedagogia do Espírito Santo usa um método que é contrário ao da pedagogia natural. Nesta, o mestre tende a se tornar ausente, e a deixar o discípulo entregue à própria iniciativa. Naquela, ao contrário, quando a alma evolui e se deixa cada vez mais guiar pelo Espírito, passando do “modo das virtudes” ou da fase purgativa, para o “modo dos dons” ou fase iluminativa, cada vez mais presente e atuante se torna o Mestre. A perfeição do homem se medirá assim por um misterioso produto de autonomia e de obediência.

Quando se desequilibra o binômio, quando se eclipsa o critério da obediência, a alma se precipita e cai, não querendo obedecer senão a si mesma, ou querendo obedecer a qualquer ídolo.

Tocamos agora aqui um ponto que nos põe novamente em contato com os textos de Santo Tomás do parágrafo anterior: por que será que nesse desequilíbrio o homem é levado àquela situação em que passa a valorizar, como principal de si mesmo, o “homem exterior” ou a “natureza sensível”?

Faça o leitor a seguinte experiência: saia pelas ruas e vá entrevistando as pessoas, a fim de saber o que é que elas consideram realmente e verdadeiramente seu próprio. Ou não saia de casa e se examine a si mesmo. Na ânsia de procurar em si mesmo o gosto próprio dos frutos da árvore da Ciência do bem e do mal, começará por ver que tudo isto lhe veio de fora. Veio de fora a notícia das ciências, das artes, das religiões. Quem sabe se a moral, como dizem, não vem da sombra do pai, ou da superestrutura social? Numa dessas horas de procura do autêntico, Giovani Papini descobriu que devia ao café a página que escrevera. Onde está o meu eu próprio, incontestável, puro autêntico, centro de todos os meridianos, de minha perfeita sinceridade? Eu mesmo, diferenciado, próprio, único, incontaminado, isento, soberanamente imparcial e livre, onde estou?

Para afastar-se das categorias que lhe parecem superimpostas (e que muitas vezes realmente o são) o homem que busca o eu absoluto e não violado, o eu secreto, põe-se a descer a escada em caracol, e a afundar no subterrâneo da irracionalidade, a se agarrar nas notas individuantes de costas para a luz. Por quê? Porque a luz lhe traz uma notícia de fora, e o convida a alguma alienação. Para evitar qualquer sugestão, qualquer postiço que de fora o vento traz, e se cola em nosso coração para descobrir a raiz última da individualidade, a alma se inclina a valorizar o lado escuro, como se aí, longe de qualquer heteronomia, estivesse escondido o núcleo da incontestável e inimitável individualidade. O surrealismo tentou levar a arte para esse mundo das espontaneidades subterrâneas que, na opinião de seus líderes, seria a verdadeira atmosfera de Arte.

É nessa direção, nessa procura do centro de gravidade de si mesmo, de costas para a luz, no termo dessa extraviada e orgulhosa autonomia que está “a tentação eterna do homem”. Curiosa soberba! O homem prefere nesse momento, nesse ato, ser ele mesmo na argila, no limo escuro, a ser ele mesmo, por favor de outro, ainda que esse outro seja seu próprio Criador; e ainda que esse outro, depois de tudo o que aconteceu, seja o seu Salvador!

E o outro que saiu a obedecer ao primeiro ídolo que passou? Os dois itinerários, o da desobediência e o da subserviência são parecidos. Aqui também o homem mergulha no irracional da força coletiva, do movimento fisicamente contagioso. Aqui também o que funciona é a valorização do sensível, do exterior, do lado escuro. É o “amor sui usque ad contemptum Dei”.

A moderna psicologia profunda, principalmente na doutrina freudiana do super-ego, trouxe ao mundo um reforço de desconfiança em relação ao que recebemos de nosso pai, que passou a ser o mais suspeito dos personagens. Tudo o que vem do pai, do mestre, da tradição, de Deus, é visto como coação, como pressão, como imperialismo psicológico. Para cortar esse vínculo, atiramo-nos para o lado da mãe escura que devora os seus filhos.

Terá acontecido alguma coisa assim na origem de nossa história. Não temos a pretensão de esboçar aqui uma psicanálise de nossos primeiros pais; mas temos a convicção de que é impossível tratar do problema e do mistério do amor próprio sem socorro da teologia. No caso, sem lembrar o pecado original. Marca, estigma, ferida deixada pelo pecado original, mesmo depois de sua total extinção pelo batismo, o amor-próprio será o que os teólogos chamam fomes pecati.

E àquele que vai procurando algo que seja seu, absolutamente seu, sem sombra de alienação, sem sociedade dos homens e de Deus, podemos responder com toda a tradição católica que só temos de nosso, puramente nosso, a miséria de nossos pecados e de nosso amor-próprio”.

— Ora, tornamos a dizer pela centésima vez: os mestres da vida espiritual nos ensinam que a perfeição consiste no preceito, em obediência à mais bela forma de amor que podemos oferecer a nosso Pai.

Gustavo Corção 
30/10/1975.

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