O encontro
com uma doutrina, mesmo com uma doutrina que é Pessoa e que se fez Carne, ainda
não resolve os nossos problemas. Um encontro não se transforma em núpcias
gradativamente e inevitavelmente; entre uma coisa e outra é preciso inserir um
elemento decisivo.
Há um
provérbio de aparência imbecil que diz assim: “Quem pensa não casa.” É costume
ver nesse provérbio um encorajamento para se ficar, durante a vida inteira,
fechado numa prudência burguesa. Pensar, nesse caso, quer dizer: calcular
despesas, prever doenças, avaliar a liberdade perdida em confronto com os novos
encargos contraídos. Quem pensar assim não casará; resta-lhe a sabedoria
negativa do provérbio para consolo. Não casa, mas pensa. É livre e pensa; é uma
espécie de livre-pensador.
Atrás desse
sentido comodista, o provérbio encerra uma advertência e sugere que é melhor
casar do que ficar pensando. Quando um sujeito, nos caprichos da vida, encontra
moça que acha de sua afeição e que lhe corresponde, tem essa alternativa:
escolher ou pensar. O escolher é precedido, evidentemente, de um certo pensar;
é de toda prudência que se conviva com a moça, que se converse, que se observem
umas tantas coisas, antes de decidir a escolha. O homem é dotado de razão
também para casar e deve aplicá-la na justa medida.
A tarefa não
é fácil. A moça se esconde atrás de certas manobras que, no dizer de muitos
autores, lhe moram nas glândulas. O pretendente pode estar certo que ela mudará
enormemente; não é assim como agora se ri que ela vai rir; não é disso que hoje
chora que vai chorar. Seus gestos serão diferentes, sua forma se alterará, e
sua própria voz, que tanto agrada hoje, será mais cheia e mais dura no difícil
cotidiano. O mais atento leitor de um Bourget ou de um Montherlant se enganará
redondamente se quiser fazer previsões psicológicas sobre a esposa escondida na
noiva. Assim sendo, é justo que se pense e razoável que se cogite. Mas num
certo ponto do conhecer é preciso decidir. Ou escolhe, abrindo mão nesse único
ato de todas as outras moças, entregando-se totalmente, correndo todos os
riscos, agüentando todas as conseqüências, querendo desde já no seu coração
agüentá-las, tendo confiança, pelo pouco que sabe, no muito que desconhece,
trocando generosamente o pouco pelo muito, empenhando a vida inteira a vir em
cima de alguns meses que já passaram; ou então continua pensando. E se pensa
não casa. Não casa porque pode passar a vida inteira pensando. Sondando;
sopesando; excogitando. Conheço diversos casos assim, de namoros tristes que
duraram mais de vinte anos: o noivo pensava. Num caso desses, em vez de festa
de núpcias houve luto, porque o noivo morreu pensando ...
* * *
Na cataquese
antiga, conforme o texto da Doutrina dos Doze Apóstolos, havia menção de dois
caminhos: o caminho da Vida e o caminho da morte. Terminava um em núpcias;
outro em luto. Era preciso escolher. Mas não devemos de forma alguma pensar que
uns escolhiam o caminho da Vida e outros o da morte, como talvez se possa
depreender que aconteceu nas margens do Ipiranga. Ninguém efetivamente escolhe
o caminho da morte; mas entram por ele os que não querem escolher. Morrem por
não quererem morrer; perdem a vida porque a querem guardar. Foi o que aconteceu
com aquele noivo infeliz que morreu pensando; pensando e guardando; e tanto
guardou que perdeu.
O encontro,
por si só, não dá noivado. O tempo traz a confiança que é a dilatação do
encontro; mas a confiança só também não se resolve em noivado. A decisão final
cabe um ato de amor, a uma entrega; e como é ato de entrega parece morte, mas é
vida. Depois do encontro, começa o pretendente a considerar, se possui um
robusto senso comum, que é mais razoável casar com uma moça do que viver e
morrer por uma causa, ou cair apaixonado pela humanidade inteira. Em seguida,
precisa ter um certo senso lúdico para namorar com ingenuidade e sem
complicados cálculos psicológicos. Nada disso porém resolve seu caso, se aquele
senso do outro não estremece com amor e com fome, se não é um pobre na sua
carne e um pobre de espírito, isto é, se não precisa da carne do outro e do
espírito do outro, se não é, em suma, capaz de dar e de receber, se não decide,
uma vez por todas, morrer, para viver nos braços amorosos de uma noiva feliz.
Não adianta
ficar pensando indefinidamente, porque a pessoa do outro é inesgotável diante
do cogitar. Por mais que faça, não é possível entrar na equação do outro,
totalmente, com o sinal do conhecer. A pessoa só pode somar-se à pessoa com o
sinal da cruz; conhece-a de modo eminente amando-a e crucificando-se nela.
* * *
Há uma
escolha mais decisiva do que todas: um noivado que importa mais do que nenhum,
que exige muito, porque promete uma esposa sem mancha e sem ruga. Tudo pode
concorrer para o encontro; mil vezes se renova esse encontro, crescendo em
insistência e em significação. Nossa pobre natureza tem, no mais fundo dos
abismos, os recursos fundamentais para desejar e reconhecer, para anelar por
esse encontro. Tem sede de eternidade; tem inteligência configurada para a
Pessoa; tem a pobreza profunda do namorado. A confiança cresce à medida que
cresce o conhecimento; a noiva chama; todos os santos rezam em coro; um dilúvio
de méritos vem, do céu e da terra, molhar as raízes ressequidas de nosso
cogitar. Tudo isso será perdido se de nossa parte recusamos a escolha. Há um
momento, entrando pela eternidade, que resolve se haverá festa ou luto. Ou
casamos ou pensamos. Ou fazemos penitência, ato de reconhecimento e de amor, ou
prolongamos indefinidamente nossa prudência. E por mais que estudemos,
experimentemos e analisemos, por mais que cresça a confiança, se não fizermos
ato de amor, não haverá núpcias. Haverá estudo; confiança boa, mas seca;
razoável, mas não amorável. Podemos ficar neste conflito vinte anos, quarenta
anos, anotando num diário a interessante evolução de nossa personalidade. Mas
não haverá festa; e morreremos evoluindo. Poderemos passar a vida inteira
experimentando a doutrina em cima dos enigmas da natureza; do sol, dos insetos,
das glândulas, para ver se não há falha; mas como essas coisas são muitas, e
breve é a vida, morreremos fazendo a última experiência. E não haverá núpcias;
e nem sequer assistiremos aos seus preparativos com o milagre do pão e do
vinho.
Ninguém
poderá esgotar com o conhecimento o fundo da doutrina que é Pessoa, e dificilmente
poderá conhecer a milésima parte da obra humana escrita sobre a doutrina, que é
imensa. Seria loucura aguardar, para ulterior resolução, a leitura das obras
completas de São Tomás ou dos textos patrísticos. Mal temos tempo para ler uns
poucos antigos e meia dúzia dos autores modernos e mal podemos compreender os
textos em toda a profundidade.
Será
evidentemente um grande benefício para qualquer pessoa ler com boa vontade a
obra de Maritain, de Karl Adam, de Guardini, de Amoroso Lima, de Dom Vonier, de
Dom Columba Marmion1; seria ainda melhor ler São Tomás, Santo
Agostinho, São Cipriano, Santo Inácio, Santo Irineu; seria ainda melhor ler as
Sagradas Escrituras. Mas ainda melhor do que tudo é pedir perdão a Deus e rezar
um simples Padre-Nosso pedindo para a secura da alma o socorro da Fé, da
Esperança e da Caridade.
Porque quem
quiser ler tudo, ler mais e mais ainda, quer ficar pensando: e não se converte.
O que ele deseja, pelo direito, vem depois da opção, e é uso do convívio com a
noiva. Parece círculo vicioso, mas não é círculo, é cruz. Pareceu mau
raciocínio; mas é amor. Parece que o livre e indefinido exame é a maior
dignidade humana, mas não é, porque a maior é a Caridade.
Num certo
ponto de seu conhecer ganhou confiança; então precisa escolher. Ninguém ganha a
Fé por um aperfeiçoamento progressivo da discriminação, nem ganha a Esperança
pela ginástica metódica do nervo lúdico: essas coisas são dons de Deus, temos
de pedir o que de antemão já é dado. E não basta pensar: temos de pedir
falando, levando nosso corpo, nossa voz viva ao ouvido consagrado. Temos de
entrar na objetividade de Deus.
Depois do
encontro, em que Deus e toda a Comunhão dos Santos o ajudou, o chamou, o
procurou, é a vez dele, desse ajudado, desse chamado. É a sua vez de jogar,
cabe-lhe agora o lance.
Um escritor
irônico, cujo nome me escapa, disse uma vez que “ce qu’il y a d’embêtant dans
le catholicisme, c’est qu’on n’a jamais du mérite.” A frase pode ter alguma
graça, se quiserem, mas não é verdadeira porque o catolicismo é a doutrina do nosso
único mérito. Merecemos a imagem e semelhança de Deus; e merecemos uma terrível
liberdade. Deus nos chama e nos ajuda, mas de repente ficamos numa situação
inaudita, porque nos compete responder. Quase se pode dizer que nesse instante
incrível há um silêncio de Deus. Todos os santos calam-se. Há um silêncio, uma
espera, um frêmito de impaciência, em que somente ecoam, nas almas dos eleitos,
os últimos gemidos inefáveis. E, nesse silêncio augusto e terrível, estamos
subitamente sós, sós e livres, terrivelmente sós e terrivelmente livres. Nós,
as criaturas, você, leitor, eu, o Edmundo, fomos chamados e inundados de
misericórdias; mas de repente estamos sós e livres, e temos de fazer um pequeno
ato, uma insignificância, um ato de penitência, um gesto de amor, uma coisa de
nada que tem a capacidade de encher um silêncio de Deus.
Capítulo de
"A Descoberta do Outro" - Gustavo Corção.
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