Acredito que será de grande proveito, pois, meditando sobre a fase de sua conversão, Santo Agostinho nos explica por que nossa alma hesita em seguir totalmente o caminho de Cristo mesmo quando a razão já está por completo submetida à verdade. O mestre nos mostra a importância desta pontência da alma, que é a vontade, em nossa vida espiritual; o quanto ela é decisiva para seguir ou não a Nosso Senhor.
Aconselho para quem ainda não leu o livro que...leia!
Bruno Inácio.
CAPÍTULO VIII
Luta espiritual
Então, em meio àquela luta interior que eu travava violentamente contra mim mesmo no
recesso do meu coração, perturbado no rosto e no espírito, volto-me para Alípio exclamando:
"Que tanto nos aflige? O que significa isto que ouviste? Levantam-se os ignorantes e arrebatam o
céu, e nós, com todo nosso saber insensato, nos revolvemos na carne e no sangue! Acaso temos
vergonha de segui-los porque se nos adiantaram, e não temos vergonha de não os seguir?"
Foi mais ou menos o que eu lhe disse, e dele me afastei sob forte emoção. Alípio me
olhava atônito em silêncio. Eu não falava como de costume, e muito mais que as palavras, minha
fronte, minhas fazes, meus olhos, minha cor e o tom de minha voz denunciavam meu estado de
espírito.
Nossa casa tinha um pequeno jardim, que usávamos, assim como o restante da casa, que
nosso hóspede não habitava. Para ali me levara a tormenta de meu coração, onde ninguém
pudesse interferir no ardente combate que eu travava comigo mesmo, até que se resolvesse o
assunto conforme tu sabias e eu ignorava. Mas eu delirava para reencontrar a razão, e morria
para reviver; conhecia meu mal, mas desconhecia o bem que depois haveria de sobrevir.
Retirei-me, pois, para o jardim, e Alípio seguiu-me passo a passo; mas, apesar de sua
presença, eu não estava menos só. E como haveria ele de me deixar naquele estado? Sentamo-
nos o mais longe possível da casa. Eu tremia pela violenta indignação, me enraivecia por não
poder seguir teu agrado e aliança, ó meu Deus, aliança pela qual clamavam todos os meus ossos,
que te elevavam louvores até o céu. E para ir a ti não há necessidade de navios nem de carros,
nem mesmo de dar aqueles poucos passos que separavam a casa do jardim onde estávamos.
Não somente ir, mas chegar junto de ti, nada mais é do que querer ir, mas com querer enérgico e
pleno, e não com vontade tíbia, que se dispersa em todos os sentidos, e se agita incerta, dividida,
ora levantando-se, ora voltando a cair.
Enfim, naquela angustiante hesitação, fazia mil gestos, como soem fazer os homens que
querem e não podem, ou porque não têm membros, ou porque os têm atados em cadeias,
debilitados pela fraqueza ou paralisados de qualquer outro modo. Se puxei os cabelos, se feri a
fronte, se apertei os joelhos entre os dedos entrelaçados, eu o fiz porque quis. Poderia porém
querer fazê-lo e não o fazer, se a flexibilidade de meus membros não me obedecesse. Portanto,
fiz muitas coisas, nas quais o querer não era o mesmo que o poder.
Contudo, eu não fazia aquilo que desejava acima de tudo o mais, e que eu poderia fazer
desde que o quisesse, porque se o tivesse efetivamente querido, bastava que o quisesse
sinceramente; nisto o poder é o mesmo que o querer, e querer já seria agir.
Contudo não o fazia, e meu corpo obedecia mais facilmente ao mais leve comando de
minha alma, movendo os membros segundo sua vontade, do que a própria alma obedecer a si
mesma para realizar seu grande desejo com a vontade.
CAPÍTULO XI
A desobediência da vontade
Mas, de onde vinha este prodígio? Qual sua causa? Brilhe a tua misericórdia, e perguntarei
- se é que me podem responder - aos sombrios castigos infligidos aos homens, e às tenebrosas
misérias dos filhos de Adão. De onde vem este prodígio? E qual sua causa?
A alma dá ordens ao corpo, e este obedece imediatamente; a alma dá ordens a si mesma,
e resiste. Ordena a alma à mão que se mova, e é tal sua presteza, que mal se pode distinguir a
ordem da execução; não obstante, a alma é espírito e a mão é corpo. A alma dá a si mesma a
ordem de querer, uma não se distingue da outra, e contudo, ela não obedece. De onde este
prodígio? E qual sua causa?
Manda a alma que queira - e não mandaria se não quisesse - e, não obstante, não faz o
que manda. Logo, não quer totalmente, e por isso não manda de modo total. A alma manda na
proporção do querer, e enquanto não quiser, suas ordens não são executadas, porque é a
vontade que dá a ordem de ser a uma vontade que nada mais é que ela própria. Logo, não manda
plenamente, e esta é a razão por que não faz o que manda. Porque, se estivesse em sua
plenitude, não mandaria que fosse, porque já seria.
Não há, portanto, prodígio algum em querer em parte e em parte não querer; é uma
enfermidade da alma. esta, sustentada pela verdade, não se ergue de todo, pois está oprimida
pelo peso do hábito. Há, portanto, duas vontades, ambas incompletas, e o que uma possui falta à
outra.
CAPÍTULO X
Contra os maniqueus
Desapareçam de tua presença, ó meu Deus, como os vãos faladores e sedutores do
espírito, aqueles que, ao observarem a dupla deliberação da vontade, concluem que temos duas
almas de naturezas opostas, uma boa, outra má.
Eles é que são de fato maus, que seguem tais más doutrinas; somente serão bons quando
aceitarem a verdade, concordando com os que a possuem. E assim o Apóstolo poderá dizer
deles: Outrora fostes trevas, mas agora sois luz no Senhor. Mas esses, querendo ser luz não no
Senhor, mas em si mesmos, julgam que a natureza da alma á a mesma que a de Deus; vão-se
tornando trevas ainda mais densas, pois em sua terrível arrogância se afastam ainda mais de ti,
luz verdadeira, que ilumina a todo homem que vem a este mundo. Atentai para o que dizeis, e
enchei-vos de vergonha. Aproximai-vos dele, e sereis iluminados, e vossos rostos não serão
cobertos de confusão.
Quando eu deliberava dedicar-me ao serviço do Senhor meu Deus, como de há muito me
tinha proposto, eu era o que eu queria, e lera o que eu não queria. Mas, nem queria plenamente,
nem deixar de querer por completo. Por isso lutava comigo mesmo, e me dilacerava a mim
mesmo. Essa destruição, embora involuntária, não mostrava, contudo, a presença em mim de
uma alma estranha, mas apenas o castigo de minha alma. E por isso já não era eu quem mo
infligia, mas o pecado que habitava em mim, como castigo de pecado cometido livremente, por ser
eu filho de Adão.
Com efeito, se fossem tantas as naturezas contrárias quantas são as vontades que em nós
se contradizem, não deveríamos admitir apenas duas naturezas, mas muitas. Se alguém, com
efeito, hesita entre uma reunião dos maniqueístas ou ao teatro, logo eles exclamam: "Eis aí as
duas naturezas, uma boa, que o atrai para cá, e outra má, que o arrasta pra lá. E de onde mais
viria essa hesitação de vontades opostas?"
De minha parte eu digo que ambas são más, tanto a que leva a eles como a que arrasta ao
teatro; mas eles só julgam boa a que leva até eles.
Mas, suponhamos que um dos nossos queira decidir, e conflitando as duas vontades,
titubeie entre ir ao teatro ou à nossa igreja; não ficarão indecisos os maniqueístas na resposta que
hão de dar? Porque, ou hão de confessar o que não querem, que é boa a vontade que o leva à
nossa igreja, como vão a ela os que foram iniciados em seus mistérios e lhe permanecem fiéis, ou
terão de reconhecer que num mesmo homem lutam duas naturezas más e duas almas más. E
então terão de contradizer o que afirmam, que uma natureza é boa e outra má. Ou então terão de
aceitar a verdade e, neste caso, não negarão que, quando alguém escolhe, é uma mesma alma a
que hesita entre duas vontades opostas.
Portanto, quando virem duas vontades que se contrapõem ao mesmo homem, não falem
mais de luta entre duas almas contrárias, uma boa e outra má, originadas em duas substâncias
antagônicas. Porque tu, ó Deus verdadeiro, os confundes, como no caso em que ambas as
vontades são más; por exemplo, quando alguém hesita, entre matar a outrem com um punhal ou
veneno; entre assaltar esta ou aquela propriedade alheia, quando não pode assaltar a ambas;
entre esbanjar na compra do prazer da luxúria, ou guardar dinheiro por avareza; entre ir ao circo
ou ao teatro, quando ambos sejam concomitantes; e ainda acrescento uma terceira incerteza:
entre roubar ou não a casa do próximo, em havendo a oportunidade, ou ainda, acrescento uma
quarta hipótese: entre cometer ou não adultério, se tem possibilidade para isso. Suponhamos que
todas essas circunstâncias ocorram simultaneamente; como todas são igualmente desejadas, e
irrealizáveis ao mesmo tempo, a alma será dilacerada por um conflito entre quatro vontades, ou
mais ainda, tão numerosos são os objetos de desejo! Contudo, os maniqueus não afirmam que
existe tão grande número de substâncias diferentes.
O mesmo acontece com as vontades boas. Se eu lhes pergunto se é bom deleitar-se com
a leitura do Apóstolo, com a leitura de algum salmo espiritual, ou com o comentar do Evangelho,
eles responderão a cada questão: "É bom" - Ora, se as três atividades têm a mesma atração
simultaneamente, não teríamos vontades opostas a dividir o coração do homem, enquanto
escolhe qual delas abraçar de preferência?
Todas essas vontades são boas, e lutam entre si, até que se tome uma decisão, que
unifique a vontade, antes dividida. Assim também, quando a eternidade agrada à nossa parte
superior e o bem temporal nos prende fortemente cá embaixo: é a mesma alma que, sem uma
vontade plena, quer um e outro desses bens. Por isso, dilacera-a uma grande dor; a verdade nos
faz preferir a eternidade, mas o hábito não quer abandonar os bens temporais.
CAPÍTULO XI
Últimas resistências
Assim sofria e me atormentava, com acusações mais acerbas que de costume, rolando-me
e debatendo-me dentro de minha cadeias, para ver se as quebrava por completo. Elas mal me
prendiam,mas ainda me prendiam. E tu, Senhor, me espicaçavas no fundo de minha alma, e com
severa misericórdia redobravas os açoites do temor e da vergonha, para que eu não afrouxasse
de novo, e para que quebrasse minha tênue e leve cadeia, antes que ela se revigorasse para me
prender mais firmemente.
E dizia comigo mesmo: "Vamos! Mãos à obra, sem demoras!" E quase passava da palavra
à ação. Estava a ponto de agir, mas não agia. Eu já não recaía nas antigas paixões, mas delas
estava bem próximo, e tomava ainda alento de seu ar. Quase a alcançava, faltava pouco, cada
vez menos, e já quase chegava ao termo e a segurava; mas não a alcançava, nem a tocava;
hesitava entre morrer para a morte e viver para a vida. O mal arraigado dominava-me mais do que
o bem, cujo hábito eu não possuía; na medida que ia se aproximando o momento em que me
transformaria em outro homem, maior era o horror que me incutia, sem contudo me fazer voltar
para trás ou mudar de caminho. Simplesmente mantinha-me indeciso.
Mantinham-me preso umas tantas bagatelas, umas vaidades de vaidades, antigas amigas
minhas, que me puxavam por minhas vestes carnais, murmurando: "Então, nos abandonas? De
agora em diante nunca mais estaremos contigo? Desde este momento nunca mais te será lícito
isto ou aquilo?"
E que coisas, meu Deus, que torpezas me sugeriam com o que chamei de isto ou aquilo!
Por tua misericórdia, afasta-as da alma de teu servo! Oh! Que imundícies me sugeriam, que
indecências! Já se reduzira a menos da metade o número de vezes que eu lhes dava ouvidos;
não era mais um assalto aberto, frontal, mas segredado por cima dos ombros, e como que
puxando-me furtivamente, se me afastava, para que me voltasse para trás.
Contudo, faziam com que eu, vacilante, tardasse em me separar delas para correr para
onde me chamavam, enquanto o hábito violento me dizia: "Julgas que poderás viver sem elas?"
Mas isto já dizia com voz muito débil. Para onde voltava o rosto, e por onde temia passar,
mostrava-se para mim a casta dignidade da continência, serena e alegre, sem desordens,
acariciando-me honestamente para que me aproximasse sem medo. Estendia para mim, para me
acolher e abraçar, suas mãos piedosas, cheias de uma multidão de bons exemplos.
Junto dela, uma turba de meninos e meninas, uma juventude numerosa, e homens de toda
idade, viúvas veneráveis e virgens idosas. Em todas essas almas, não era estéril, mas fecunda a
mãe de filhos nascidos nas alegrias do esposo, que eras tu, Senhor!
E a continência zombava de mim com ironia animadora, como se dissesse: "Então, não
serás capaz de fazer o mesmo que eles? Ou será que estes e estas encontraram forças em si
mesmos, e não no Senhor, seu Deus? Foi o Senhor Deus, quem me entregou a eles. Por que te
apóias em ti, se és vacilante? Lança-te nele, não temas, que ele não se apartará de ti, e tu não
cairás. Lança-te com confiança, que ele te receberá e te curará."
E enchia-me de vergonha por ainda ouvir o murmúrio daquelas bagatelas e, vacilante,
continuava indeciso.
Mas de novo a voz da castidade parecia me dizer: Não dês ouvidos às tentações imundas
da tua carne impura que te prende à terra, a fim de que seja mortificada. Ela te fala de deleites,
contrários porém, à lei do Senhor teu Deus.
Essa luta se desenrolava no fundo do meu espírito, de mim contra mim mesmo. Alípio,
sem sair de perto de mim, aguardava em silêncio o desfecho de minha insólita agitação.
Prezados Bruno e Lucie,
ResponderExcluirDe fato, seria de muito proveito que muitos lêssem essa grandiosa, piedosa e santa conversão, desse grande santo que foi Agostinho.
Saudações marianas.
Alexandre