quarta-feira, 2 de maio de 2012

Meditação sobre a vontade no livro "Confissões" de Santo Agostinho.

Abaixo transcevo um trecho desse maravilhoso livro de Santo Agostinho, grande Santo, filósofo, Teólogo, Doutor e mestre de almas.
Acredito que será de grande proveito, pois,  meditando sobre a fase de sua conversão, Santo Agostinho nos explica por que nossa alma hesita em seguir totalmente o caminho de Cristo mesmo quando a razão já está por completo submetida à verdade. O mestre nos mostra a importância desta pontência da alma, que é a vontade, em nossa vida espiritual; o quanto ela é decisiva para seguir ou não a Nosso Senhor.

Aconselho para quem ainda não leu o livro que...leia!

Bruno Inácio.



                                                                   CAPÍTULO VIII

Luta espiritual

Então,  em  meio  àquela  luta  interior  que  eu  travava  violentamente  contra  mim  mesmo  no
recesso  do  meu  coração,  perturbado  no  rosto  e  no  espírito,  volto-me  para  Alípio  exclamando:
"Que tanto nos aflige? O que significa isto que ouviste? Levantam-se os ignorantes e arrebatam o
céu, e nós, com todo nosso saber insensato, nos revolvemos na carne e no sangue! Acaso temos
vergonha de segui-los porque se nos adiantaram, e não temos vergonha de não os seguir?"
Foi  mais  ou  menos  o  que  eu  lhe  disse,  e  dele  me  afastei  sob  forte  emoção.  Alípio  me
olhava atônito em silêncio. Eu não falava como de costume, e muito mais que as palavras, minha
fronte, minhas fazes, meus olhos, minha cor e o tom de minha voz denunciavam meu estado de
espírito.
Nossa casa tinha um pequeno jardim, que usávamos, assim como o restante da casa, que
nosso  hóspede  não  habitava.  Para  ali  me  levara  a  tormenta  de  meu  coração,  onde  ninguém
pudesse  interferir  no  ardente  combate  que  eu  travava  comigo  mesmo,  até  que  se  resolvesse  o
assunto  conforme  tu  sabias  e  eu  ignorava.  Mas  eu  delirava  para  reencontrar  a  razão,  e  morria
para reviver; conhecia meu mal, mas desconhecia o bem que depois haveria de sobrevir.
Retirei-me,  pois,  para  o  jardim,  e  Alípio  seguiu-me  passo  a  passo;  mas,  apesar  de  sua
presença, eu não estava menos só. E como haveria ele de me deixar naquele estado? Sentamo-
nos  o  mais  longe  possível  da  casa.  Eu  tremia  pela  violenta  indignação,  me  enraivecia  por  não
poder seguir teu agrado e aliança, ó meu Deus, aliança pela qual clamavam todos os meus ossos,
que te elevavam louvores até o céu. E para ir a ti não há necessidade de navios nem de carros,
nem  mesmo  de  dar  aqueles  poucos  passos  que  separavam  a  casa  do  jardim  onde  estávamos.
Não somente ir, mas chegar junto de ti, nada mais é do que querer ir, mas com querer enérgico e
pleno, e não com vontade tíbia, que se dispersa em todos os sentidos, e se agita incerta, dividida,
ora levantando-se, ora voltando a cair.
Enfim,  naquela  angustiante  hesitação,  fazia  mil  gestos,  como  soem  fazer  os  homens  que
querem  e  não  podem,  ou  porque  não  têm  membros,  ou  porque  os  têm  atados  em  cadeias,
debilitados pela  fraqueza  ou  paralisados  de  qualquer  outro  modo.  Se  puxei  os  cabelos,  se  feri  a
fronte,  se  apertei  os  joelhos  entre  os  dedos  entrelaçados,  eu  o  fiz  porque  quis.  Poderia  porém
querer fazê-lo e não o fazer, se a flexibilidade de meus membros não me obedecesse. Portanto,
fiz muitas coisas, nas quais o querer não era o mesmo que o poder.
Contudo, eu não fazia aquilo que desejava acima de tudo o mais, e que eu poderia fazer
desde  que  o  quisesse,  porque  se  o  tivesse  efetivamente  querido,  bastava  que  o  quisesse
sinceramente; nisto o poder é o mesmo que o querer, e querer já seria agir.
Contudo  não  o  fazia,  e  meu  corpo  obedecia  mais  facilmente  ao  mais  leve  comando  de
minha  alma,  movendo  os  membros  segundo  sua  vontade,  do  que  a  própria  alma  obedecer  a  si
mesma para realizar seu grande desejo com a vontade.

CAPÍTULO XI

A desobediência da vontade

Mas, de onde vinha este prodígio? Qual sua causa? Brilhe a tua misericórdia, e perguntarei
- se é que me podem responder - aos sombrios castigos infligidos aos homens, e às tenebrosas
misérias dos filhos de Adão. De onde vem este prodígio? E qual sua causa?
A alma dá ordens ao corpo, e este obedece imediatamente; a alma dá ordens a si mesma,
e resiste. Ordena a alma à mão que se mova, e é tal sua presteza, que mal se pode distinguir a
ordem  da  execução;  não  obstante,  a  alma  é  espírito  e  a  mão  é  corpo.  A  alma  dá  a  si  mesma  a
ordem  de  querer,  uma  não  se  distingue  da  outra,  e  contudo,  ela  não  obedece.  De  onde  este
prodígio? E qual sua causa?
Manda a alma que queira - e não mandaria se não quisesse - e, não obstante, não faz o
que  manda.  Logo,  não  quer  totalmente,  e  por  isso  não  manda  de  modo  total.  A  alma  manda  na
proporção  do  querer,  e  enquanto  não  quiser,  suas  ordens  não  são  executadas,  porque  é  a
vontade que dá a ordem de ser a uma vontade que nada mais é que ela própria. Logo, não manda
plenamente,  e  esta  é  a  razão  por  que  não  faz  o  que  manda.  Porque,  se  estivesse  em  sua
plenitude, não mandaria que fosse, porque já seria.
Não  há,  portanto,  prodígio  algum  em  querer  em  parte  e  em  parte  não  querer;  é  uma
enfermidade  da  alma.  esta,  sustentada  pela  verdade,  não  se  ergue  de  todo,  pois  está  oprimida
pelo peso do hábito. Há, portanto, duas vontades, ambas incompletas, e o que uma possui falta à
outra. 

CAPÍTULO X

Contra os maniqueus

Desapareçam  de  tua  presença,  ó  meu  Deus,  como  os  vãos  faladores  e  sedutores  do
espírito, aqueles que, ao observarem a dupla deliberação da vontade, concluem que temos duas
almas de naturezas opostas, uma boa, outra má.
Eles é que são de fato maus, que seguem tais más doutrinas; somente serão bons quando
aceitarem  a  verdade,  concordando  com  os  que  a  possuem.  E  assim  o  Apóstolo  poderá  dizer
deles: Outrora fostes trevas, mas agora sois luz no Senhor. Mas esses, querendo ser luz não no
Senhor, mas em si mesmos, julgam que a natureza da alma á a mesma que a de Deus; vão-se
tornando trevas ainda mais densas, pois em sua terrível arrogância se afastam ainda mais de ti,
luz  verdadeira,  que  ilumina  a  todo  homem  que  vem  a  este  mundo.  Atentai  para  o  que  dizeis,  e
enchei-vos  de  vergonha.  Aproximai-vos  dele,  e  sereis  iluminados,  e  vossos  rostos  não  serão
cobertos de confusão.
Quando eu deliberava dedicar-me ao serviço do Senhor meu Deus, como de há muito me
tinha proposto, eu era o que eu queria, e lera o que eu não queria. Mas, nem queria plenamente,
nem  deixar  de  querer  por  completo.  Por  isso  lutava  comigo  mesmo,  e  me  dilacerava  a  mim
mesmo.  Essa  destruição,  embora  involuntária,  não  mostrava,  contudo,  a  presença  em  mim  de
uma  alma  estranha,  mas  apenas  o  castigo  de  minha  alma.  E  por  isso  já  não  era  eu  quem  mo
infligia, mas o pecado que habitava em mim, como castigo de pecado cometido livremente, por ser
eu filho de Adão.
Com efeito, se fossem tantas as naturezas contrárias quantas são as vontades que em nós
se  contradizem,  não  deveríamos  admitir  apenas  duas  naturezas,  mas  muitas.  Se  alguém,  com
efeito,  hesita  entre  uma  reunião  dos  maniqueístas  ou  ao  teatro,  logo  eles  exclamam:  "Eis  aí  as
duas naturezas, uma boa, que o atrai para cá, e outra má, que o arrasta pra lá. E de onde mais
viria essa hesitação de vontades opostas?"
De minha parte eu digo que ambas são más, tanto a que leva a eles como a que arrasta ao
teatro; mas eles só julgam boa a que leva até eles.
Mas,  suponhamos  que  um  dos  nossos  queira  decidir,  e  conflitando  as  duas  vontades,
titubeie entre ir ao teatro ou à nossa igreja; não ficarão indecisos os maniqueístas na resposta que
hão de dar? Porque, ou hão de confessar o que não querem, que é boa a vontade que o leva à
nossa igreja, como vão a ela os que foram iniciados em seus mistérios e lhe permanecem fiéis, ou
terão  de  reconhecer  que  num  mesmo  homem  lutam  duas  naturezas  más  e  duas  almas  más.  E
então terão de contradizer o que afirmam, que uma natureza é boa e outra má. Ou então terão de
aceitar a verdade e, neste caso, não negarão que, quando alguém escolhe, é uma mesma alma a
que hesita entre duas vontades opostas.
Portanto, quando virem duas vontades que se contrapõem ao mesmo homem, não falem
mais  de  luta  entre  duas  almas  contrárias,  uma  boa  e  outra  má,  originadas  em  duas  substâncias
antagônicas.  Porque  tu,  ó  Deus  verdadeiro,  os  confundes,  como  no  caso  em  que  ambas  as
vontades são más; por exemplo, quando alguém hesita, entre matar a outrem com um punhal ou
veneno;  entre  assaltar  esta  ou  aquela  propriedade  alheia,  quando  não  pode  assaltar  a  ambas;
entre esbanjar na compra do prazer da luxúria, ou guardar dinheiro por avareza; entre ir ao circo
ou  ao  teatro,  quando  ambos  sejam  concomitantes;  e  ainda  acrescento  uma  terceira  incerteza:
entre  roubar  ou  não  a  casa  do  próximo,  em  havendo  a  oportunidade,  ou  ainda,  acrescento  uma
quarta hipótese: entre cometer ou não adultério, se tem possibilidade para isso. Suponhamos que
todas  essas  circunstâncias  ocorram  simultaneamente;  como  todas  são  igualmente  desejadas,  e
irrealizáveis  ao  mesmo  tempo,  a  alma  será  dilacerada  por um  conflito  entre  quatro  vontades, ou
mais  ainda,  tão  numerosos  são  os  objetos  de  desejo!  Contudo,  os  maniqueus  não  afirmam  que
existe tão grande número de substâncias diferentes.
O mesmo acontece com as vontades boas. Se eu lhes pergunto se é bom deleitar-se com
a leitura do Apóstolo, com a leitura de algum salmo espiritual, ou com o comentar do Evangelho,
eles  responderão  a  cada  questão:  "É  bom"  -  Ora,  se  as  três  atividades  têm  a  mesma  atração
simultaneamente,  não  teríamos  vontades  opostas  a  dividir  o  coração  do  homem,  enquanto
escolhe qual delas abraçar de preferência?
Todas  essas  vontades  são  boas,  e  lutam  entre  si,  até  que  se  tome  uma  decisão,  que
unifique  a  vontade,  antes  dividida.  Assim  também,  quando  a  eternidade  agrada  à  nossa  parte
superior  e  o  bem  temporal  nos  prende  fortemente  cá  embaixo:  é  a  mesma  alma  que,  sem  uma
vontade plena, quer um e outro desses bens. Por isso, dilacera-a uma grande dor; a verdade nos
faz preferir a eternidade, mas o hábito não quer abandonar os bens temporais.

CAPÍTULO XI

Últimas resistências

Assim sofria e me atormentava, com acusações mais acerbas que de costume, rolando-me
e  debatendo-me  dentro  de  minha  cadeias,  para  ver  se  as  quebrava  por  completo.  Elas  mal  me
prendiam,mas ainda me prendiam. E tu, Senhor, me espicaçavas no fundo de minha alma, e com
severa misericórdia redobravas os açoites do temor e da vergonha, para que eu não afrouxasse
de novo, e para que quebrasse minha tênue e leve cadeia, antes que ela se revigorasse para me
prender mais firmemente.
E dizia comigo mesmo: "Vamos! Mãos à obra, sem demoras!" E quase passava da palavra
à ação. Estava a ponto de agir, mas não agia. Eu já não recaía nas antigas paixões, mas delas
estava  bem  próximo,  e  tomava  ainda  alento  de  seu  ar.  Quase  a  alcançava,  faltava  pouco,  cada
vez  menos,  e  já  quase  chegava  ao  termo  e  a  segurava;  mas  não  a  alcançava,  nem  a  tocava;
hesitava entre morrer para a morte e viver para a vida. O mal arraigado dominava-me mais do que
o  bem,  cujo  hábito  eu  não  possuía;  na  medida  que  ia  se  aproximando  o  momento  em  que  me
transformaria  em  outro  homem,  maior  era  o  horror  que  me  incutia,  sem  contudo  me  fazer  voltar
para trás ou mudar de caminho. Simplesmente mantinha-me indeciso.
Mantinham-me preso umas tantas bagatelas, umas vaidades de vaidades, antigas amigas
minhas,  que  me  puxavam  por  minhas  vestes  carnais,  murmurando:  "Então,  nos  abandonas?  De
agora  em  diante  nunca mais  estaremos  contigo?  Desde  este  momento  nunca  mais  te  será  lícito
isto ou aquilo?"
E que coisas, meu Deus, que torpezas me sugeriam com o que chamei de isto ou aquilo!
Por  tua  misericórdia,  afasta-as  da  alma  de  teu  servo!  Oh!  Que  imundícies  me  sugeriam,  que
indecências!  Já  se  reduzira  a  menos  da  metade  o  número  de  vezes  que  eu  lhes  dava  ouvidos;
não  era  mais  um  assalto  aberto,  frontal,  mas  segredado  por  cima  dos  ombros,  e  como  que
puxando-me furtivamente, se me afastava, para que me voltasse para trás.
Contudo,  faziam  com  que  eu,  vacilante,  tardasse  em  me  separar  delas  para  correr  para
onde me chamavam, enquanto o hábito violento me dizia: "Julgas que poderás viver sem elas?"
Mas isto já dizia com voz muito débil. Para onde voltava o rosto, e por onde temia passar,
mostrava-se  para  mim  a  casta  dignidade  da  continência,  serena  e  alegre,  sem  desordens,
acariciando-me honestamente para que me aproximasse sem medo. Estendia para mim, para me
acolher e abraçar, suas mãos piedosas, cheias de uma multidão de bons exemplos.
Junto dela, uma turba de meninos e meninas, uma juventude numerosa, e homens de toda
idade, viúvas veneráveis e virgens idosas. Em todas essas almas, não era estéril, mas fecunda a
mãe de filhos nascidos nas alegrias do esposo, que eras tu, Senhor!
E  a  continência  zombava  de  mim  com  ironia  animadora,  como  se  dissesse:  "Então,  não
serás  capaz  de  fazer  o  mesmo  que  eles?  Ou  será  que  estes  e  estas  encontraram  forças  em  si
mesmos, e não no Senhor, seu Deus? Foi o Senhor Deus, quem me entregou a eles. Por que te
apóias em ti, se és vacilante? Lança-te nele, não temas, que ele não se apartará de ti, e tu não
cairás. Lança-te com confiança, que ele te receberá e te curará."
E  enchia-me  de  vergonha  por  ainda  ouvir  o  murmúrio  daquelas  bagatelas  e,  vacilante,
continuava indeciso.
Mas de novo a voz da castidade parecia me dizer: Não dês ouvidos às tentações imundas
da tua carne impura que te prende à terra, a fim de que seja mortificada. Ela te fala de deleites,
contrários porém, à lei do Senhor teu Deus.
Essa  luta  se  desenrolava  no  fundo  do  meu  espírito,  de  mim  contra  mim  mesmo.  Alípio,
sem sair de perto de mim, aguardava em silêncio o desfecho de minha insólita agitação.

Um comentário:

  1. Prezados Bruno e Lucie,

    De fato, seria de muito proveito que muitos lêssem essa grandiosa, piedosa e santa conversão, desse grande santo que foi Agostinho.

    Saudações marianas.

    Alexandre

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